quinta-feira, maio 31, 2007

noção proprioceptiva e heminegligência

hoje estava com o pedro na caixa do supermercado, a colocarmos as compras no tapete rolante, e dei por mim a observar como o pedro usa actualmente a mão direita (o lado lesado) quando precisa dela. eu passava-lhe os artigos e ele apanhava-os um em cada mão e ia-os dispondo no tapete. lembrei-me dos primeiros tempos e da luta que foi para ele vencer a heminegligência direita. como a mão não era eficaz na preensão, tinha tendência para esquecê-la. na altura explicaram-nos que o cérebro vai construindo a imagem do corpo à medida que os estímulos vão chegando vindos das diferentes partes que constituem o todo. quanto mais um determinado segmento é utilizado, mais se reforçam as ligações neurológicas e as vias de controlo. se, devido à lesão, o segmento não se mover expontâneamente, as vias alternativas não se estabelecem e o cérebro não toma consciência desse segmento. quando nascemos, não temos noção dos limites do nosso próprio corpo, esta noção proprioceptiva é construida à medida que aprendemos a utilizar e controlar todos os segmentos, à medida que os músculos vão enviando estímulos através dos neurónios motores e as ligações entre os vários neurónios das vias motoras se vão estabelecendo. durante muito tempo o pedro apresentava pois esta negligência em relação ao braço direito, às vezes era como se aquele membro não fosse dele, como se ele não tivesse qualquer controlo. foi à custa de muita estimulação e de forçar que ele utilizasse a sua mão direita que conseguimos que ele a incorporasse no seu esquema corporal, na sua autopercepção. lembro-me que o forçavamos a utilizar o braço e a mão direita colocando objectos fora do alcance do lado esquerdo. mesmo assim, a tendência dele era para se movimentar de modo a que a mão esquerda chegasse ao objecto. frequentemente tinhamos que inibir o braço esquerdo e forçá-lo a utilizar o direito. outra guerra foi o desenvolvimento das reacções protectoras de extensão nesse lado lesado, mas também isso foi conseguido à custa de muita persistência. claro que, ainda hoje, a mão direita do pedro não é eficaz em termos de motricidade fina, mas actualmente é um auxiliar precioso para as actividades bimanuais e mesmo para algumas actividades monomanuais. o trabalho de estimulação nos primeiros tempos foi crucial nesta conquista, por isso partilho isto hoje aqui.

terça-feira, maio 29, 2007

factores incontornáveis

não deixa de me parecer estranho que nos comentários ao post anterior quase que se tenham estabelecido dois campos, dois lados: o dos pais e o dos técnicos/educadores/professores, como se não lutássemos ambos pelos mesmos objectivos. a bem da verdade quero deixar bem claro que neste nosso percurso encontrámos profissionais dedicadíssimos, com verdadeira paixão pelo seu trabalho. a dicotomia, a haver, será estabelecida pelo simples facto de nós, pais, estarmos envolvidos a um outro nível com carácter de permanência. quero acreditar nas boas intenções de todos os profissionais que lidam com o pedro, mas há factores que são incontornáveis. vão-me dizer que a comparação é infeliz, mas é a única que me ocorre, dentro do meu universo profissional. trabalho num laboratório de análises clínicas, numa área bastante sensível, que tem a ver com o diagnóstico da infecção pelo HIV. como responsável pelo funcionamento do laboratório, asseguro que nenhum diagnóstico da infecção seja feito sem ter a certeza absoluta do resultado, uma vez que por vezes há resultados falsamente positivos. isto dá mais trabalho, exige repetições, duplicação de amostras, realização de testes confirmatórios que depois não são pagos ao laboratório, mas a minha capacidade de me colocar no lugar do outro, da pessoa que poderia receber um diagnóstico errado, não me deixa actuar doutra forma. sei no entanto, que há outros laboratórios nesta cidade que não tomam todos estes cuidados, e que se justificam dizendo que um resultado positivo no teste de despiste pode ser um falso positivo, e que toda a gente deve saber isso. em ambas as situações, estamos a trabalhar dentro da legalidade, aquilo que eu faço a mais não me era exigido tecnicamente, é uma exigência que eu faço a mim mesmo como ser humano. isto é um aspecto. outro aspecto é que quando tenho que comunicar o diagnóstico a uma pessoa infectada, e posso assegurar-vos que a notícia tem sempre um impacto terrível, por muita empatia que eu possa sentir e por muito cuidado que eu possa ter nas palavras que utilizo e na maneira como conduzo a conversa, quem tem que viver com a situação é a pessoa infectada. por muito que eu explique e aponte as soluções terapêuticas actuais que permitem a estas pessoas levarem uma vida dentro da normalidade, a situação é-me alheia. eu, quando termino o meu trabalho, vou à minha vida, o problema fica lá com o outro. não me interpretem mal, não quero de maneira nenhuma comparar a situação de ter um filho portador de deficiência com a situação de ter uma infecção pelo HIV. quero realçar apenas que os nossos meninos, para técnicos/educadores/professores, são o objecto do seu trabalho, mais ou menos dedicado conforme os casos, sempre tecnicamente aceitável. sobre quem recai realmente a responsabilidade permanente por eles é sobre nós. e esta diferença é fundamental. é por isso que não me parece boa política subvalorizar a visão que os pais têm dos filhos. e por ser esta uma área muito sensível, sempre que nos aparece um técnico/educador/professor que é capaz de dar algo mais do que aquilo que lhe é exigido legal e tecnicamente, a tal empatia, a tal capacidade de se colocar no lugar do outro, aquece-nos por dentro.

sexta-feira, maio 18, 2007

planos, inspectores e normalidade (seja lá isso o que fôr)

perguntava-me a maria, em comentário ao post anterior, qual a capacidade de intervenção dos pais nos planos que são feitos para os seus filhos. se calhar é melhor falar aqui um pouco sobre estes documentos. enquanto o pedro frequentava a intervenção precoce na a.p.p.c., todos os anos era efectuado o p.i.a.f., plano integrado de apoio à família, onde eram traçados os objectivos para esse ano em relação ao pedro. o plano era elaborado pelos diferentes técnicos intervenientes (terapêutas, educadores, psicóloga, etc) e depois discutido em reunião com todos, incluindo os pais. nesse plano constavam as avaliações efectuadas pelos diferentes técnicos e os objectivos cognitivos, de desenvolvimento motor, de controlo de esfíncteres, and so on. na reunião eram incluídos os pais e elementos das outras instituições onde o pedro estava integrado, nomeadamente creches e jardins infantis que o pedro frequentava. não sei indicar a legislação que sustenta estes planos, mas suponho que uma busca na net produza frutos. desde que o pedro integra a unidade de apoio aos surdos, existe o p.e.i. (plano educativo individual), que é semelhante ao p.i.a.f., mas não tão abrangente, porque não inclui elementos de outras instituições. como alunos especiais que são, estes meninos não seguem os conteúdos programáticos normais do seu ciclo de estudos. mais uma vez não sei qual a legislação, essa parte sempre foi área da mãedopedro, que está dentro do sistema educativo. é elaborado um p.e.i. para cada ciclo de estudos. o pedro teve um no pré-escolar e agora foi elaborado o correspondente ao 1º ciclo. quer o p.i.a.f. quer o p.e.i., devem analisados pormenorizadamente, pois eles só têm validade depois de assinados pelos pais. neste p.e.i. do 1º ciclo, que considerámos pouco ambicioso, havia dois ou três adjectivos qualificativos dos atrasos de desenvolvimento do pedro (físico e cognitivo), com os quais não concordávamos. tivemos hoje a reunião para discutir o assunto. os adjectivos eram "grave" e "acentuado". não temos dúvidas de que o pedro tem atrasos no seu desenvolvimento, se comparado com a normalidade, mas qualificar, parece-nos abusivo. quais são as escalas? quantos graus existem? grave corresponde a quê? e acentuado? enquanto que em relação à surdez existe uma escala e quando se fala em surdez profunda toda a gente sabe o que isso quer dizer, em relação aos atrasos de desenvolvimento, não há sistematização e o "grave" para uns, pode ser "moderado" para outros, dependendo do contexto e do universo de referência. a reunião nem correu bem nem mal. conseguimos que o adjectivo "acentuado" caísse, não nos souberam explicar exactamente o que queria dizer, a que grau da "tabela" correspondia. o "grave" ficou lá, salvaguardado com uma expressão do tipo "mas com francos progressos".
depois destes anos todos com o pedro, não conseguimos olhar para ele como tendo atrasos graves ou acentuados. rejubilamos com os progressos dele e valorizamos as suas conquistas. se calhar perdemos a noção de normalidade, mas hoje constatámos que essa noção está bem presente em muitas pessoas, que olham para o nosso pedrocas através dela. ficámos a saber que recentemente esteve na unidade um grupo de senhores inspectores, que ao lerem o projecto de plano para o pedro, o consideraram muito ambicioso. esse mesmo que nós achámos pouco ambicioso. imagino que devem ter olhado para o miúdo e do alto da sua ignorância fizeram uma ideia rápida e falsa, recheada de todos os preconceitos habituais. muito ambicioso? e não temos que ser ambiciosos com estes meninos? a triste e crua verdade, é que temos que prepará-los para uma sociedade que vai sempre olhá-los através das lentes do preconceito, em comparação com um padrão de normalidade, que vai sempre olhar para as suas imperfeições. a batalha vai ser dura, não vale a pena fingir que não.

terça-feira, maio 15, 2007

aparentemente são apenas palavras

este blog tem andado meio calado, porque está triste. não sei se tristeza será o termo mais adequado, talvez seja mais desânimo... ou talvez não. o plano educativo individual proposto pela escola do pedro tem algumas frases com as quais não concordamos, por serem redutoras das expectativas no pedro, e consequentemente, indício de um menor investimento por parte dos agentes intervenientes. a avaliação psicológica então deixa muito a desejar. vê-se à légua que foi elaborado à pressa, para despachar serviço, começando por se afirmar que não se têm instrumentos de avaliação adequados à situação do pedro e terminando com uma avaliação nada abonatória, que não reproduzo, porque ainda vai ser objecto de discussão em reunião próxima. incomodam-me sobremaneira estes técnicos que do alto da sua doutorice lançam frases sem pensarem nas consequências que o registo escrito pode ter. dizem-nos os leitores deste blog, habituados a estas andanças, que não se pode ligar muito a isto, que os principais motores da estimulação dos nossos filhos temos que ser nós. não concordo. ou por outra, não aceito. os técnicos que trabalham com os nossos meninos têm que ser tão bons e tão conscientes do seu trabalho e das consequências dos seus actos como qualquer outro profissional. como nós temos que ser bons nas nossas actividades profissionais e pensarmos nas consequências dos nossos actos. temos que confiar que quem lida com os nossos filhos "especiais" está ali para dar o seu melhor, em função das crianças, e não em função dos seus interesses pessoais, da sua promoção, ou da defesa de uma pretensa infalibilidade. se não têm essa capacidade, então nunca deveriam ter vindo trabalhar para uma área tão sensível como esta. incomoda-me também quem não é capaz de aceitar que errou, que foi leviano, e tenta perpetuar o erro, porque têm uma estranha regra interna que lhes diz que, aconteça o que acontecer, não podem admitir o erro ou a precipitação.
o que salva esta questão, espero eu, é que estes documentos têm que ter a aprovação dos pais ou dos encarregados de educação. nunca devem ser assinados sem serem lidos atentamente, digo eu que já meti argoladas neste campo. são registos que ficam no processo dos alunos e que podem servir de escudo para o não investimento ou para o baixar dos níveis de exigência, no futuro. um registo, que surge num determinado contexto pode ser completamente descontextualizado e utilizado com outro sentido. dizem-nos que estes planos podem sempre ser revistos e o seu conteúdo alterado de acordo com a evolução dos alunos, mas é melhor não confiar.
claro que não é a primeira vez que isso nos acontece. já por duas ou três vezes que tivemos que "afastar" profissionais da equipa do pedro, por acharmos que não estavam a contribuir de maneira positiva para o desenvolvimento desta dinâmica que é a habilitação duma criança que nasce com deficiência. pessoas que só nos apontam aquilo que ele ainda não faz ou que se armam em futurologistas negativistas não nos interessam, e isto não é esconder a cabeça na areia como as avestruzes. é lutar pelo direito de acreditarmos e termos forças para darmos o nosso melhor.

quarta-feira, maio 09, 2007

Eu sei que tu sabes que eu sei

Quando o Pedrinho nasceu eu tinha no meu quarto um postal com a frase "eu sei que tu sabes que eu sei", é daquelas frases que ao longo destes anos ainda continua presente na minha memória e que frequentemente recorro a ela. Lembro-me da primeira consulta de neuropediatria e do tom técnico da Dra ao dizer que me preparasse para o pior e o pior era um túnel sem luz ao fundo. O Pedro dia a dia tem-me mostrado que os piores receios técnicos de uma médica não eram mais do que os seus receios, talvez para que nós pais preparados para o pior, ficassemos contentes com alguns progressos motores, afectivos e cognitivos do nosso Pedrinho. Pois bem, passados 7 anos o Pedro tem-nos surpreendido pela positiva, primeiro com o seu sorriso maravilhoso, depois com os seus abraços afectuosos, mais tarde com a necessidade de comunicar e a adquisição da língua gestual e há relativamente pouco tempo ensaiou a marcha autónoma e hoje em dia é um reboliço para o convencer que não pode andar pela casa toda. Hoje recebemos da Escola o Plano Educativo Individual e no meio das competências gerais e essenciais definidas para o aluno Pedro, acompanhadas da síntese da avaliação psicológia não pude deixar de ler nas entrelinhas os mesmos receios por parte dos técnicos de educação que acompanham o Pedro que outrora recebí da Dra. neuropediatra. No início, tive receio que o meu filho não fosse capaz de conseguir a sua autonomia, tanto a nível motor, como socio-afectivo e cognitivo. Hoje não tenho dúvidas de que se ele for devidamente ajudado e sem receios, conseguirá conquistá-la, apesar da sua diferença. O problema agora é convencer os técnicos a não terem medo e serem capazes de dár-lhe as armas necessárias para um dia ele também ser capaz de voar.

domingo, maio 06, 2007

dia da mãe

não sei o que é ser mãe. na prática, no dia a dia, nos cuidados com a prole, penso que não é muito diferente de ser pai. há algumas tarefas que elas fazem melhor do que nós pais, há outras que fazem pior, mas isso varia de casal para casal. mas interiormente, penso que ser mãe é muito diferente. lembro-me de sentir um grande fascínio à medida que a barriga da mãedopedro crescia durante as gravidezes. quando me era dado senti-los, quando aqueles pés ou mãos faziam pretuberâncias no ventre, já ela os sentia há muito tempo. na prática, as mães levam 9 meses de vantagem em relação a nós, sentem os filhos desenvolverem-se dentro de si e isso nós nunca poderemos saber o que é. e isso faz uma diferença fundamental. há um elo especial que nunca se quebra, que nunca experimentei, mas que me sinto feliz por poder observá-lo.

imagem: maternidade, almada negreiros, 1935

nomeados

fomos nomeados pelo grilices como um dos thinking bloggers. obrigado. dando continuidade a esta cadeia de nomeações, indicamos os nossos 5 thinking bloggers:

estou no mundo à pc - um blog colectivo, com testemunhos de pais, cidadãos com paralisia cerebral e profissionais, pela perspectiva multifacetada.

testemunha da paralisia cerebral - o blog do pedro serrano, um rapaz de 15 anos com uma alegria de viver contagiante.

baú do silêncio - um blog encerrado em janeiro deste ano, mas que contém uma colecção de textos marcantes sobre viver com surdez, escrito por silencebox.

a luta constante pela integridade - um dos blogs escrito pela memorex, uma jovem surda muito especial. embora temporariamente encerrado, de lá podem aceder aos outros blogs da autora, qualquer um vale a pena.

"estórias de um pai" - um blog sobre a paternidade, escrito com muito humor pelo paibabado.

terça-feira, maio 01, 2007

hoje foi dia de festa

faz hoje 13 anos um dos dias mais felizes da nossa vida familiar. feriado, dia da mãe, a nossa sara decidiu nascer, com toda a sua impetuosidade taurina. foi um dia de sol radioso, por fora e por dentro. por isso, hoje foi dia de festa cá em casa. ontem à noite vieram uma amiguinhas dormir numa festa de pijama e esta tarde veio o resto da pandilha. o pedro andou numa roda viva e numa grande excitação todo o tempo, ontem rodeado de meninas (que já não são tão meninas assim), hoje no meio da confusão. foi bom verificar que as amigas da irmã lidaram com ele com bastante naturalidade, apreveitaram a oportunidade para aprenderem alguns gestos e, antes do resto da pandilha chegar, o pedro esteve por várias vezes entregue a elas. claro que ontem não o deixámos ver a montagem dos colchões na sala, senão tinhamos tido birra da grossa no momento de ir para a cama. mas esta manhã lá teve direito ao seu momento de regabofe antes de se desfazer o "cenário". a sara não manifestou o mais pequeno indício de vergonha ou constrangimento em relação ao irmão, isso já o sabíamos, todos os seus amigos sabem e conhecem a história. casa cheia, todos os avós, alguns amigos nossos, o pedro estava radiante. claro que a sua nova autonomia trouxe alguns problemas numa casa de portas abertas e portões da escada retirados para permitir a livre circulação de dezena e meia de adolescentes que entravam e saiam, subiam e desciam, incessantemente, mas com a supervisão dos adultos e algumas birras pelo meio, principalmente quando a festa se concentrava no quarto da irmã que fica no piso de cima e nós não o deixávamos subir, a coisa não ficou pesada para ninguém. como há 13 anos atrás, foi um dia feliz.